sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A travessia das águas do Mearim: A comunhão dos peixes





Por Ivan Pessoa*

Tales de Mileto estava certo, tudo é água e na variedade de suas expressões a vida revela-se purificada. Para o taoísmo o Absoluto, de nome impronunciável, é como a água, revigorante, mas imponderável, de sorte que vivifica, contudo jamais se mostra. Em meio aos seus segredos velados, as águas escondem não apenas nereidas, oceânides ou orixás, mas igualmente baleias, como a insubmissa Moby Dick, ou o espadarte de O velho e o Mar.

Jorge Luís Borges em seu Bestiário: O livro dos seres imaginários conta a mítica versão dos nômades dos desertos árabes que creem que um peixe gigante de nome Bahamut firma a Terra, como um sustentáculo. Borges, afora seus lapsos de prolífica inventividade, cita um certo Lane e assim considera: “ Deus criou a Terra, mas a Terra não tinha sustentáculo e assim por baixo da Terra criou um anjo. Mas o anjo não tinha sustentáculo e assim por baixo dos pés do anjo criou um penhasco de rubi. Mas o penhasco não tinha sustentáculo e assim por baixo do penhasco criou um touro com quatro mil olhos, orelhas, ventas, bocas, línguas e pés. Mas o touro não tinha sustentáculo e assim por baixo dos pés do touro criou um peixe chamado Bahamut, e por baixo do peixe pôs água, e por baixo da água pôs escuridão, e a ciência humana não vê além desse ponto.”

Como tudo o que é coberto atrai demasiado rios, oceanos e mares, aflora ao imaginário dos homens como se por lá se hospedassem seres encantados, criaturas de míticas proporções. Em meio ao encanto das águas do rio Mearim, o ictiólogo entusiasta e cirurgião-dentista de profissão, Éden Carmo Soares, retrata com uma riqueza imensa de detalhes as belezas naturais daquelas paragens. Já no início de seu maestrio: Os peixes do Mearim, a fisgada é decisiva: “A vida, em sua maior abrangência, o homem e suas atividades encontram nos rios o mais extraordinário dos lugares para sobreviver, crescer e se desenvolver. Água, alimento, vias navegáveis e a fertilidade do solo pelos sedimentos aluviais das cheias significaram atrativos fundamentais para o estabelecimento de grandes civilizações à margem de rios. Os egípcios, no Nilo, são o exemplo mais lembrado. ‘O Egito é um presente do Nilo’ – deixou dito Heródoto.” (p.23) Como existe uma ordem mística a aproximar os homens e os rios, em um curso de contínua sucessão, as águas espelham os céus aliançando a comunhão cósmica das criaturas. Sendo assim, peixes são estrelas que vagam destemidamente cindindo a escuridão mais noturna do fundo das águas. Quanto maior o destemor, maior a exuberância, a magnitude. Os peixes do Mearim, como estrelas submersas, revelam-se nas grandezas de um rio com seus 930km, multiplicando-se através das espécies de Corrós, Poraqués, Sarapós, Bodós, Aracus, Arraias, ou seja, em uma diversidade de manifestações ictiológicas. Em função da riqueza técnica de detalhes, cita-se Éden Carmo Soares, especificamente com relação às arraias-pintadas: “A arraia-pintada é a espécie representante do grupo dos peixes cartilaginosos de água doce no Mearim. [...] É uma temeridade caminhar em ambientes minados de arraia, porque, quando pisado, esse peixe chicoteia vigorosamente a cauda, fazendo penetrar seu ferrão pungente e venenoso nos pés ou nas pernas de sua vítima. [...] Para afastar tal perigo, os pescadores recomendam caminhar-se arrastando os pés, em vez de levantá-los, ou utilizar um bastão para afugentar as arraias. [...] Um espécime adulto pode pesar, normalmente, 15 kg, e o diâmetro do disco chega a medir 70cm.” Com sua riqueza imensa de vegetação, afora os mistérios insondáveis das águas, é possível se encontrar, nas profundezas do Mearim, a presença ofídica de um peixe chamado Muçum que, segundo Éden: “ Seu corpo é serpentiforme, amarelado ou escuro, descamado e mucoso, com pregas carnosas, lembrando nadadeiras dorsal e anal. Pode viver longo tempo fora d’água e em galerias no barro, quando ficam secos os lamaçais, onde frequentemente habita. Revelação curiosa de nossa pesquisa é que a fêmea, após o primeiro período reprodutivo, muda de sexo: transforma-se em macho. Pelo que informam pescadores da região, o muçum atinge 1,5m de comprimento. Temos ouvido encômios sobre a espécie, servida guisada, frita ou assada. São raros, porém, na região, os adeptos das iguarias. Pescam-no de tarrafa, choque, anzol, ou com vara de gancho, quando entocado. Mas os ribeirinhos do Mearim não são costumeiros pescadores do muçum.” Peixes das mais variadas espécies, famílias e formas, apenas endossam aquela definitiva sentença bíblica, especificamente no livro do Gênesis (1,6): “Deus disse: ‘ Que haja o firmamento no meio das águas e que separe ele uma das outras.’ Deus fez o firmamento e separou as águas superiores do firmamento das águas inferiores.” No trânsito revolto dessas águas inferiores, os peixes que ali afloram são tão atípicos, quanto extraordinários.

Na Idade Média, quando ocorriam fenômenos inusitados como tornados, que deslocavam cardumes de peixes pelos ares, acreditava-se que os mesmos já nasciam adultos nos céus, para em seguida procurarem os mares. Séculos atrás, mais precisamente quatrocentos anos antes de Cristo, o grego Ateneu presenciara uma chuva onírica de peixes que duraria três dias na região de Queronéia, no Peloponeso. Quando muitos, a depender das contigências naturais, como estrelas cadentes, os peixes podem voar. No Mearim, em função de suas especificidades, diferentemente do Coió que voa até uma altura de 6 metros, o Poraqué torna-se igualmente um diferencial: “ o poraqué tem cabeça achatada, olhos pequenos e boca rasgada. O papo e o ventre são marrom-avermelhados. Apresenta as nadadeiras peitorais pequenas e uma anal longa e franjada que, na extremidade posterior do corpo, forma uma pseudo nadadeira caudal. Vale-se da mucosa bucal, ricamente vascularizada, para efetuar a respiração aérea, quando vem à tona. Privado dessa respiração suplementar, morre por asfixia. Das 250 espécies de peixes produtores de eletricidade que se estimam existir, no mar e na água doce, esse habitante de muitas bacias sul-americanas é o mais potente na produção de descargas elétricas. Seus órgãos elétricos situam-se ao longo dos flancos, e, como ‘baterias’, esgotam-se, à medida que emitem descargas de potencial, tanto mais elevado quanto maior for o espécime, chegando a 600 volts ou mais. Com essas descargas, defende-se de predadores e imobiliza as suas presas, para devorá-los. Esgotando suas ‘baterias’, precisa de tempo para ‘recarregá-las’. Atingindo cerca de 2m de comprimeto, 10kg e uns 15cm de diâmetro, o poraqué vive em águas escuras e sombrias dos pequenos cursos d’água, lagos e lagoas mearinenses, onde eventualmente surpreende, com violentas descargas, em animais e pessoas que ali penetrem.”

Se tudo for água, como propusera Tales de Mileto, e água for vida, então os peixes que estão entremeados com a vida não são nada mais do que reservatórios de luminosidade, vívidas estrelas. Como os anos passam com sanha de progresso, sede de devastação, outra não é a escatologia de nossos últimos dias, senão padecermos, não como peixes, pela boca, antes com os olhos, sedentos por luz.

*Professor de Filosofia.
FONTE: Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante

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