sábado, 28 de março de 2020

17 - O ENCARCERADO (Costa Filho)

Costa Filho - literato
Naquele dia Agamenon acordou tarde. Olhou-se no espelho. Estava mais velho, porém disposto. Era como se tivesse dormido uma eternidade. Cada um tem sua eternidade. E a dele ia fazer uns dois meses. Nem supermercado, nem teatro, nem lugar algum, só em casa, nessa ele se permitia ficar, manhã, tarde e noite. Até o jornaleiro tinha despachado por um tempo. Queria isolar-se na sua chácara. Queria dias longos e noites bem dormidas. Queria fazer de cada dia de sua vida, uma eternidade com qual já se habituara. Como de costume, quase não deixava seu ninho. Seu confortável ninho. Não precisava deixá-lo. Adorava sua própria companhia. Além do mais tinha consigo Carlindo e Joana, um amável casal de serviçais que, morando nos fundos, lhe cuidavam e lhe faziam boa companhia. Vivia no conforto e podia ter tudo o que quisesse, mas preferia a tradição. Detestava as redes sociais e por extensão, as tecnologias, até o mais óbvio: a televisão.  Até o radinho de ondas curtas perdeu a voz. A vez agora era dele, com sua vida peculiar. Ultimamente, se isolara mais ainda do mundo exterior, socando-se nos seus livros de papel e nos seus escritos sem fim. Tudo naturalmente. Essa era uma escolha que o deixava feliz.  
Agora acordara uma vez mais, e já não sabia nada do mundo, nem sobre as notícias recentes. Não sabia de nada lá fora, nem tinha pressa por isso. Sua única pressa e notícias que o interessavam naquele momento estava na caixa postal do correio e nas cartas que mais tarde iria postar.  Vestiu-se como um inglês e saiu em seu calhambeque, repleto mais de zelo e estilo, do que de ostentação, logo, isso não o envaidecia. Não era nada, além do que o usufruto de sua vida de trabalho na juventude.
Saiu rua a fora. O primeiro impacto estava na primeira esquina, na segunda, na terceira, em todas as esquinas. E continuava o suspense, nas ruas vazias, nas portas cerradas, nos sobrados tristes, na cidade fantasma. Os semáforos reclamavam o movimento infernal dos veículos e transeuntes a disputar um mesmo espaço; os consultórios, cafés, shoppings, parques e paradas jaziam sozinhos e calados. Não tinha o artista de rua, nem o vendedor de balas, não havia ricos, nem mendigos nas calçadas, nem nas praças. Era tudo um cenário ermo, enigmático, mas sobretudo, estranho. Aquilo havia de ser ilusão, um sonho, qualquer coisa, menos uma verdade. Mas a verdade logo veio se comprovar quando uma viatura lhe passou averiguando os modos e lhe acusando com um olhar repreensível. Estranhou que os homens da lei lhe parecessem uns terroristas, pois levavam no rosto uma espécie de capuz curto. Pela primeira vez, teve medo. Manteve a serenidade. Seguiu, agora mais intrigante. Na agência do correio, aonde ia, se estampava fechada, e as portarias e vitrines sem os costumeiros guardas. Começou a perceber que os órgãos públicos, e as escolas, e as autarquias, e o setor privado, e o comércio e a indústria, estavam com a mesma cara do correio: triste e vazia. Agora se lembrava que as pouquíssimas pessoas que vira pelo caminho, algumas delas eram também como que terroristas à paisana. Não parou para perguntar nada, nem à moça que limpava um corrimão de escada em sua varanda. Em outras varandas e cozinhas americanas, viu pessoas a lavar as mãos e outras ainda a esfregá-las pelas ruas e jardins.  Apenas achou normal, mas um normal anormal.
Bacabal em quarentena: Rua Getúlio Vargas em 23.03.2020
E continuou seu caminho já de volta. Numa esquina cruzou com um veículo cheio de pessoas com roupas brancas parecidas enfermeiras e médicos. E lá mais longe uma ambulância ia lhe passar ao meio, se o sinal não abrisse logo. Aí foi que não quis perguntar mesmo. E não tinha mesmo a quem perguntar.

Sem cartas da caixa postal e com as mesmas cartas que levou, volveu o caminho de volta à chácara. Apesar de ser um dia enxuto e lindo, lhe parecia o mais bizarro de todos os seus dias. E era. Não se viam mais por ali crianças dantes catando flores, nem jovens e guris jogando pelada, nem mesmo os passantes de suas obrigações, só uma pessoa e outra na janela, isolada, e alguns velhos nas portas a jogar baralho e a falar qualquer coisa mortal ouvida na televisão. E seguiam no seu jogo, entre a vida e a morte com as cartas passando de mão em mão.

Não quis saber disso. Seguiu ao seu ninho. Adentrou seu recinto bucólico. Sentiu o sossego e a segurança de sua morada. Lembrou que tinha tevê. Correu direto a ela. Logo ouviu uma notícia que lhe fez lembrar do cenário deserto da cidade. Andou por todos os canais, nacionais e estrangeiros. A mesma coisa, a mesma notícia a correr o mundo.

Da cozinha vieram, apavorados, Carlindo e Joana com um radinho na mão:

— Sinhô Agá precisa ir lavar as mãos.

— Já andei sabendo disso, Joana!

— E também ficar em casa.

— Carlindo, “Gratias ago Deo”, temos como ficar em casa.

Precavido, Agamenon se asseou como dito na tevê, pegou caneta e papel, pediu mingau de aveia e encarcerou-se em sua própria casa, no seu arejado escritório, de onde nunca deveria ter saído.

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(Costa Filho, Sexta te conto, 2020, mar. 27)

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